segunda-feira, 8 de março de 2021

8M - As vozes mulheres

 

Imagem de: Carlos Latuff (2014)

Débora de Nez de Melo 
Denise Silveira Barbosa 

Mais um 8 de março. Dessa vez – e no que tem parecido ser um looping cruel de 2020 – com um gosto ainda mais amargo. As homenagens, chocolates, felicitações e a característica rosa que, no imaginário popular, dá forma e cor a essa data, nesses tempos, só podem ser coadjuvantes diante do panorama catastrófico de uma pandemia. No mundo, o cenário envolvendo as mulheres, já antes alarmante, se complexifica ainda mais: aumento na agressão por parceiros íntimos durante o isolamento social (ONU Mulheres, 2020), maioria na taxa de desemprego mundial (Oxfam, 2021), produtividade acadêmica comprometida em função das tarefas domésticas e homeoffice (Parent in Science, 2020) e por aí vai. No Brasil, somam-se a isso todos os aspectos culturais e infraestruturais, velhos conhecidos, e o caldo da questão das mulheres torna-se ainda mais intragável. 

Quando contexto para presentear mulheres com produtos genéricos que, supostamente, agradam e contemplam a todas, a data evidencia sua íntima relação com o chamado comércio da beleza. Como faca de dois gumes, a prática de venda do autocuidado feminino - por meio de cosméticos e procedimentos estéticos - vincula o consumo à produção de autoestima e amor próprio, escondendo sua face perversa. A mesma lógica que se diz promotora do autocuidado e da aceitação é, igualmente, a que tem as mulheres como alvo fácil de insatisfação. (Re)produz transtornos e inadequações, participando diretamente da manutenção da lógica de violência e opressão contra as mulheres. A data é, ainda, pretexto para a comemoração do sucesso e ascensão social das poucas de nós que conseguem triunfar mesmo com as difíceis imposições do meio.

Longe de ser uma data apenas comemorativa, porém, o 8M é, historicamente, marcado por protestos e manifestações. A luta das mulheres pela libertação de diversos modos de opressão - na forma de movimentos social, político, filosófico - passou por diferentes contornos e adotou diferentes critérios e significados ao longo de sua estruturação. De reivindicações pelo direito de existência na vida pública, trabalho, voto, igualdade salarial e representatividade nos diversos âmbitos da sociedade, à luta pelo exercício de sexualidades e religiosidades não hegemônicas e reconhecimento das diferenças e da profundidade dos abismos que separavam as mulheres, tanto dos homens quanto entre si. Tudo isso, de alguma forma, está referenciado pela lembrança desta data.

Engana-se, então, quem pensa que o compartilhamento de algumas dores e pautas deve ser tomado como um convite a um entendimento unívoco do que é ser mulher e das suas lutas. “O imperativo de unidade muitas vezes é confundido com uma necessidade de homogeneidade”, já nos alertava Lorde (1984). O ser mulher é diferencialmente experienciado - e complexificado - de acordo com algumas variáveis historicamente determinadas, tais como raça, etnia, sexualidade e classe social. A posição de que não há uma experiência única e absoluta do que é ser mulher e de que suas condições são determinadas historicamente também ganha respaldo na produção em Análise do Comportamento (por exemplo, Ruiz, 2009; Silva & Laurenti, 2016).

De que adianta um dia para celebrar o ser mulher se não se pode definir claramente o que é esse ser e se os estereótipos e imagens públicas são tão comumente esvaziados de sentido? A marcação do 8 de março é um convite à rememoração da organização política e coletiva de mulheres em prol de sua humanidade e, portanto, de outro modelo de sociedade. É uma carta aberta, que denuncia as diversas violências e opressões, especialmente às mais vulneráveis de nós, e que apresenta os diversos modos de ser mulher e suas resistências, cotidianas e organizadas. Nesse sentido, o exercício não é dar voz às mulheres, pois essas vozes já existem, ecoam, gritam e engasgam em cada canto, em cada corpo, em cada pele. O exercício é o de escuta. Que o fim deste texto seja o início de uma escuta – e uma provocação – pelas Vozes-Mulheres, de Conceição Evaristo:

Vozes-Mulheres

 

A voz de minha bisavó

ecoou criança

nos porões do navio.

ecoou lamentos

de uma infância perdida.

 

A voz de minha avó

ecoou obediência

aos brancos-donos de tudo.

 

A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias

debaixo das trouxas

roupagens sujas dos brancos

pelo caminho empoeirado

rumo à favela

 

A minha voz ainda

ecoa versos perplexos

com rimas de sangue

            e

            fome.

 

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

 

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

O eco da vida-liberdade.

Referências:

Lorde, A. (1984). Age, race, class and race: women redifining difference. Em Sister Outsider: Essays and speeches. Nova York: Crossing Press, 114-123.

Onu Mulheres. (2020). Prevenção da Violência contra Mulheres diante da COVID-19 na América Latina e no Caribe. Recuperado em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/05/BRIEF-PORTUGUES.pdf

Oxfam. (2021). O Vírus da desigualdade. Nota para mídia. Recuperado de: https://oxfamilibrary.openrepository.com/bitstream/handle/10546/621149/bp-the-inequality-virus-summ-250121-en.pdf

Parent in Science. (2020). Produtividade acadêmica durante a pandemia: efeitos de gênero, raça e parentalidade. Recuperado de: https://327b604e-5cf4-492b-910b-e35e2bc67511.filesusr.com/ugd/0b341b_81cd8390d0f94bfd8fcd17ee6f29bc0e.pdf?index=true

Ruiz,  M.  R.  (2009).  Beyond  the  mirrored  spa-ce:  Time  and  resistance  in  feminist  theory.  Behavior and Philosophy, 37, 141-147.

Silva, E. C., & Laurenti, C. (2016). B. F. Skinner e Simone de Beauvoir: “A mulher” à luz do modelo de seleção pelas consequências. Revista Perspectivas, 7(2), 197- 211. https://doi.org/10.18761/pac.2016.009 

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