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de: Carlos Latuff (2014)
Mais um 8 de março. Dessa vez – e no que tem parecido ser um looping cruel de 2020 – com um gosto ainda mais amargo. As homenagens, chocolates, felicitações e a característica rosa que, no imaginário popular, dá forma e cor a essa data, nesses tempos, só podem ser coadjuvantes diante do panorama catastrófico de uma pandemia. No mundo, o cenário envolvendo as mulheres, já antes alarmante, se complexifica ainda mais: aumento na agressão por parceiros íntimos durante o isolamento social (ONU Mulheres, 2020), maioria na taxa de desemprego mundial (Oxfam, 2021), produtividade acadêmica comprometida em função das tarefas domésticas e homeoffice (Parent in Science, 2020) e por aí vai. No Brasil, somam-se a isso todos os aspectos culturais e infraestruturais, velhos conhecidos, e o caldo da questão das mulheres torna-se ainda mais intragável.
Quando contexto para presentear mulheres com produtos genéricos que, supostamente, agradam e contemplam a todas, a data evidencia sua íntima relação com o chamado comércio da beleza. Como faca de dois gumes, a prática de venda do autocuidado feminino - por meio de cosméticos e procedimentos estéticos - vincula o consumo à produção de autoestima e amor próprio, escondendo sua face perversa. A mesma lógica que se diz promotora do autocuidado e da aceitação é, igualmente, a que tem as mulheres como alvo fácil de insatisfação. (Re)produz transtornos e inadequações, participando diretamente da manutenção da lógica de violência e opressão contra as mulheres. A data é, ainda, pretexto para a comemoração do sucesso e ascensão social das poucas de nós que conseguem triunfar mesmo com as difíceis imposições do meio.
Longe de ser uma data apenas comemorativa, porém, o 8M é,
historicamente, marcado por protestos e manifestações. A luta das mulheres pela
libertação de diversos modos de opressão - na forma de movimentos social,
político, filosófico - passou por diferentes contornos e adotou diferentes
critérios e significados ao longo de sua estruturação. De reivindicações pelo
direito de existência na vida pública, trabalho, voto, igualdade salarial e
representatividade nos diversos âmbitos da sociedade, à luta pelo exercício de
sexualidades e religiosidades não hegemônicas e reconhecimento das diferenças e
da profundidade dos abismos que separavam as mulheres, tanto dos homens quanto
entre si. Tudo isso, de alguma forma, está referenciado pela lembrança desta
data.
Engana-se, então, quem pensa que o compartilhamento de
algumas dores e pautas deve ser tomado como um convite a um entendimento
unívoco do que é ser mulher e das suas lutas. “O imperativo de unidade muitas
vezes é confundido com uma necessidade de homogeneidade”, já nos alertava Lorde
(1984). O ser mulher é diferencialmente
experienciado - e complexificado - de acordo com algumas variáveis
historicamente determinadas, tais como raça, etnia, sexualidade e classe
social. A posição de que não há uma experiência única e absoluta do que é ser
mulher e de que suas condições são determinadas historicamente também ganha
respaldo na produção em Análise do Comportamento (por exemplo, Ruiz, 2009;
Silva & Laurenti, 2016).
De que adianta um dia para celebrar o ser mulher se não se
pode definir claramente o que é esse ser e
se os estereótipos e imagens públicas são tão comumente esvaziados de sentido?
A marcação do 8 de março é um convite à rememoração da organização política e
coletiva de mulheres em prol de sua humanidade e, portanto, de outro modelo de
sociedade. É uma carta aberta, que denuncia as diversas violências e opressões,
especialmente às mais vulneráveis de nós, e que apresenta os diversos modos de
ser mulher e suas resistências, cotidianas e organizadas. Nesse sentido, o exercício não é dar voz às mulheres, pois essas
vozes já existem, ecoam, gritam e engasgam em cada canto, em cada corpo, em
cada pele. O exercício é o de escuta. Que o fim deste texto seja o início de
uma escuta – e uma provocação – pelas Vozes-Mulheres, de Conceição Evaristo:
Vozes-Mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
Referências:
Lorde, A. (1984). Age, race, class
and race: women redifining difference. Em Sister Outsider: Essays and speeches.
Nova York: Crossing Press, 114-123.
Onu Mulheres. (2020). Prevenção da Violência contra Mulheres diante da
COVID-19 na América Latina e no Caribe. Recuperado em:
https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/05/BRIEF-PORTUGUES.pdf
Oxfam. (2021). O Vírus da desigualdade. Nota para mídia.
Recuperado de: https://oxfamilibrary.openrepository.com/bitstream/handle/10546/621149/bp-the-inequality-virus-summ-250121-en.pdf
Parent in Science. (2020). Produtividade acadêmica durante a
pandemia: efeitos de gênero, raça e parentalidade. Recuperado de:
https://327b604e-5cf4-492b-910b-e35e2bc67511.filesusr.com/ugd/0b341b_81cd8390d0f94bfd8fcd17ee6f29bc0e.pdf?index=true
Ruiz, M.
R. (2009). Beyond
the mirrored spa-ce:
Time and resistance
in feminist theory.
Behavior and Philosophy, 37,
141-147.
Silva, E. C., & Laurenti, C. (2016). B. F. Skinner e Simone de Beauvoir: “A mulher” à luz do modelo de seleção pelas consequências. Revista Perspectivas, 7(2), 197- 211. https://doi.org/10.18761/pac.2016.009
Muito bom!! Inspirador demais
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